sexta-feira, 1 de abril de 2016

A paixão segundo G. H. - Clarice Lispector


    Ler "A paixão segundo G.H." em pleno período de páscoa é, no mínimo, intrigante. Considerada a obra inaugural do épico órfico (narrativa com foco no interior do ser, e não no espaço externo) no Brasil, se distancia fortemente do romance regional de 1930, sendo uma viagem incessante em busca do "eu" que não tem medo de mesclar existencialismo com religiosidade de uma maneira ímpar - Clarice não cita doutrinas ou uma religião seguida, mas conversa e fala de Deus a todo momento, reafirmando seu apreço pelo misticismo.

    Escrito em 1964, o livro, e não ouso dizer o romance ou o ensaio, tendo em vista que a obra vai além de qualquer rótulo ao englobar todos em um só, fala sobre G.H.. Após a saída de sua empregada, ela decide arrumar o quarto da ex-secretária - até então, tudo normal, mas eis que a personagem chega no quarto e encontra uma barata, animal pelo qual tem total desprezo. Quando G.H. encontra a barata, nós encontramos a genialidade de Clarice.

    A história não busca ser compreendida, sendo esse o grande empecilho para muitos leitores. É uma narrativa pra se sentir e, ao se apropriar desse entendimento, tudo no livro, que é uma grande experiência, flui. Seremos, logo, capazes de ir além de um mero relato, percebendo os diferentes cunhos que a autora aborda: o existencial permeia toda a obra, tendo em vista que a protagonista não se vê em nenhuma definição de si ("Até então eu nunca fora dona de meus poderes - poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja"), já o social é perceptível com a saída da empregada, de existência até então ignorada a ponto de a empregadora chegar a se questionar o nome da moça - tal comportamento me lembrou o dos nobres do início do século XX, que nunca sabiam o nome dos que trabalhavam em suas casas pela insignificância vista na diferença social. 

     "O meu melhor livro será aquele que eu conseguir escrever sem palavras", disse Lispector. De fato, um bom escritor é aquele que, com pouco, diz muito. "A paixão segundo G. H." é um livro de enredo banal e narrativa curta que chega a ser tão original a ponto de causar estranheza no leitor. Em 180 páginas, diz o que muitos calhamaços queriam, mas não o fazem.


 


"Eu não poderia viver sem escrever. Mas passei uns oito anos de aridez. Sofri muito. Pensei que não escreveria mais, nunca mais. E aí veio de repente um livro inteiro, que escrevi com muita satisfação: A Paixão segundo G. H. Aí não parei mais."

Clarice Lispector, entrevista a O Globo, 29 de abril de 1976