Ler "A paixão segundo G.H." em pleno
período de páscoa é, no mínimo, intrigante. Considerada a obra inaugural do
épico órfico (narrativa com foco no interior do ser, e não no espaço
externo) no Brasil, se distancia fortemente do romance regional de 1930, sendo
uma viagem incessante em busca do "eu" que não tem medo de mesclar
existencialismo com religiosidade de uma maneira ímpar - Clarice não cita
doutrinas ou uma religião seguida, mas conversa e fala de Deus a todo momento,
reafirmando seu apreço pelo misticismo.
Escrito em 1964, o livro, e não ouso dizer o
romance ou o ensaio, tendo em vista que a obra vai além
de qualquer rótulo ao englobar todos em um só, fala sobre G.H.. Após a
saída de sua empregada, ela decide arrumar o quarto da ex-secretária - até
então, tudo normal, mas eis que a personagem chega no quarto e encontra uma
barata, animal pelo qual tem total desprezo. Quando G.H. encontra a barata, nós
encontramos a genialidade de Clarice.
A história não busca ser compreendida, sendo esse
o grande empecilho para muitos leitores. É uma narrativa pra se sentir e, ao se
apropriar desse entendimento, tudo no livro, que é uma grande
experiência, flui. Seremos, logo, capazes de ir além de um mero
relato, percebendo os diferentes cunhos que a autora aborda: o existencial
permeia toda a obra, tendo em vista que a protagonista não se vê
em nenhuma definição de si ("Até então eu nunca fora dona de
meus poderes - poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em
mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria
desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que
seja"), já o social é perceptível com a saída da empregada, de
existência até então ignorada a ponto de a empregadora chegar a se questionar o
nome da moça - tal comportamento me lembrou o dos nobres do início do
século XX, que nunca sabiam o nome dos que trabalhavam em suas casas
pela insignificância vista na diferença social.
"O meu melhor livro será aquele que eu
conseguir escrever sem palavras", disse Lispector. De fato, um bom
escritor é aquele que, com pouco, diz muito. "A paixão segundo G. H."
é um livro de enredo banal e narrativa curta que chega a ser tão original a
ponto de causar estranheza no leitor. Em 180 páginas, diz o que muitos
calhamaços queriam, mas não o fazem.
"Eu não poderia viver sem escrever.
Mas passei uns oito anos de aridez. Sofri muito. Pensei que não escreveria
mais, nunca mais. E aí veio de repente um livro inteiro, que escrevi com muita satisfação:
A Paixão segundo G. H. Aí não parei mais."
Clarice Lispector, entrevista a O Globo,
29 de abril de 1976